quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

ISABEL ALLENDE | « O que pode fazer uma mulher pobre e analfabeta numa cultura machista, isolada numa aldeia da Índia? Se não consegue alimentar os filhos, como lhe vamos pedir que lute pelo feminismo? »

 

a imagem acima é um recorte da entrevista de Isabel    Allende  a  LUCIANA LEIDERFARB |  fotografia de LEONARDO CENDAMO/GETTY IMAGES

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O trabalho saiu no Expresso – na Revista a 12 DEZ 2020 – e infelizmente só está acessível a assinantes. Se puder, tente obtê-lo. Assim, apenas excertos: 


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«(...)Define o feminismo como uma sublevação contra a autoridade do homem, mas é também uma luta mais abrangente. Quer explicar?

O feminismo não é apenas uma coisa de mulheres. É a visão de um mundo diferente, em que os homens e as mulheres partilham a gestão do mundo — em que os valores femininos têm o mesmo peso que os masculinos. Por outro lado, a nova vaga de feministas jovens incorporou outros grupos oprimidos, como os LGBT, que compartem o protesto e a necessidade de mudança. Isso viu-se no Chile, quando começaram os distúrbios, em outubro do ano passado. Os protestos eram de cariz económico, com vista a mudar a Constituição e um sistema económico que cria uma imensa desigualdade, mas depois começaram a aparecer outras bandeiras de reivindicação, a do movimento feminista, a dos indígenas...

Afirma que a violência de uma sociedade se mede pela violência que exerce ou não sobre as mulheres.

Elas são os canários na mina de carvão [the canary in a coal mine]. O modo como são tratadas espelha o grau de doença de uma sociedade.

Ao falar-se de direitos humanos, estes incluem as mulheres?

Supostamente, sim. Porém, de facto, não. Cultural ou legalmente, permite-se a mutilação das meninas, o tráfico. Quando uma mulher é espancada, considera-se um assunto doméstico. Se o espancado for um homem, chama-se a isso tortura e o agressor é preso. Isto quer dizer que quando a vítima é mulher, a lei não intervém da mesma forma. Já para não falar da quantidade de femicídios que passam com total impunidade, em países aparentemente civilizados. Até há pouco tempo, se um homem matava uma mulher por motivos passionais, estes constituíam uma atenuante. (...)

O que diz às mulheres que não lutam pelos seus direitos?

Há dois tipos de mulheres nesta situa­ção. As privilegiadas, para as quais já se atingiu tudo o que era preciso — e que questionam para quê continuar uma luta tão pouco sexy. E as que não tiveram acesso à informação, aos instrumentos para pensar criticamente. O que pode fazer uma mulher pobre e analfabeta numa cultura machista, isolada numa aldeia da Índia? Se não consegue alimentar os filhos, como lhe vamos pedir que lute pelo feminismo? Se uma mulher não tem controlo sobre a sua fertilidade, como se vai defender no caso de ficar grávida após uma violação? A lei não a protege. Não somente a obriga a ter o filho como não a ajuda a educá-lo. Esse filho, se for homem, será um delinquente. Se for mulher, será mais uma vítima.

Existe o machismo no feminino?

Existe a limitação de oportunidades para formar uma consciência. E uma forma de olhar para o feminismo que exclui os homens, o que é um erro, porque os homens podem ser grandes aliados. O meu filho, por exemplo, trabalha na Fundação; o seu trabalho é ajudar as mulheres e investir na sua capacitação. Para ele, o machismo é algo exótico. Por outro lado, sociedades como a Islândia ou a Noruega, em que as mulheres estão presentes em todos os quadrantes sociais, têm um grau mínimo de machismo. E as mulheres que estão no poder agem como mulheres. O mais comum é o oposto: considerar-se inédita, única, a circunstância de uma mulher chegar a presidente ou a diretora de um banco. Para atingir estes patamares, as mulheres competem com as mesmas armas que os homens, sem os mesmos resultados.  (...)»

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