Excertos do trabalho do Público:
«Hélia Correia: “Escrevo de uma forma completamente cega”
Certas Raízes é o regresso de um nome maior da literatura portuguesa, livro de contos que mergulha nas sombras, no indizível. “Não sou medrosa, mas começo a ter medo.” “Sinal” destes tempos.
«(...)
A acção do conto Certas Raízes gira em torno das perturbações nas famílias, das relações pessoais, da violência doméstica, e, principalmente, da crueldade humana. Há uma mulher deformada, a quem chamam a “Miss Macaca”, que é usada como atracção de feira e perseguida por turbas ferozes. De onde veio esta personagem?
Esse conto é, talvez, o ápice, o extremo da escrita sobre a violência que eu já fiz. Senti quase terror, à medida que ele se desenrolava. Não sou uma pessoa medrosa, mas começo a ter medo, o que é um sinal dos tempos que vivemos.
Ser-se medroso e ter medo são situações diferentes – uma é pessoal, natural, e a outra mais colectiva. Onde é que a Hélia se posiciona?
Agora tenho um medo muito concreto – temos todos ou quase todos, creio. Foi o que senti quando escrevi esse conto, porque existem semelhanças com este medo real do que pode vir a acontecer, por caminhos ínvios.
Refere-se à emergência de fascismos, da violência de multidões arrastadas por ideologias extremistas?
Sim. As multidões cegas destroem tudo à sua passagem. É uma espécie de alucinação, porque é sempre um processo muito pouco racional. A minha escrita, que é intuitiva, está agora, cada vez mais, infectada pelo real, por estes tempos tão ameaçadores. É algo que se cola à nossa pele.
No conto Aniversário, um homem vergado ao peso da idade ressente-se ao ver jovens mulheres que, para ele, são “pequenas harpias, com unhas aduncas”. Têm relação com outras figuras femininas maléficas ou deformadas que menciona amiúde na sua obra, como, por exemplo, as sereias (amplamente referidas no romance Bastardia, de 2005) ou a dama pé-de-cabra?
Ah! As sereias! As sereias gregas eram muito feias. Nada tinham que ver com a ideia da sereia bonita, da “menina do mar” de influência nórdica. Eram harpias, assustadoras. A Paula Rego fez uma série de quadros sobre esse meu livro, Bastardia, e eu fui visitá-la, no seu atelier, em Londres. Foi uma experiência maravilhosa, porque ela deu-me o braço e guiou-me ao longo da história de cada uma. Foi tão bonito!
(...)».
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