«(...)É “Cry Macho” a história de um velho que
anda à procura de um miúdo no México? Não, esse é só o ponto de partida: aquilo
de que o velho anda à procura é de uma reconciliação com ele próprio. E depois
chega a cena fulgurante da capela da Virgem Maria naquela terriola de nenhures
no deserto mexicano, em que Mike e Rafa, outra vez com o carro empanado,
aproveitam para passar a noite. É um grande momento do cinema recente de Clint.
O velho já não acredita em nada. O miúdo que lhe serve de tradutor entre
castelhano e inglês de 'pueblo' em 'pueblo' já é mais mexicano que americano e
indigna-se com a intenção de Mike em dormir debaixo de teto sagrado.
“Mike, acreditas em Deus?” / “Não sei,
acho que sim” / “És católico?” / “Não sou católico, rapaz.” / “Todos nós somos
filhos de Deus, tu também?” / “Bom, somos todos filhos de alguém...” E é depois
deste diálogo notável que Mike abre o coração, confessando ao miúdo e à
audiência o que o feriu no passado, “e eu não servi para grande coisa depois
disso.” Quem consegue ainda filmar hoje este tipo de coisas no cinema
americano? Ser tão intenso, tão emocional, num western em scope com a linha do
horizonte a rasgar a meio o enquadramento? E depois de Clint, quem os fará?
Clint trabalha que se farta em “Cry
Macho”, está em quase todos os planos, vai esmurrar um tipo, vai domar um
cavalo (com ajuda de duplos e de truncagem cinematográfica, pouco importa),
deve ter posto os médicos em polvorosa durante a rodagem (foi em solo
americano, no Estado do Novo México, durante a pandemia). Recorde-se que ele
tem 91 anos. Mike também trata dos animais como se fosse São Francisco (algures
no filme chamam-lhe o Doutor Dolittle dos livros infantis de Hugh Lofting, que
deve servir de equivalente a São Francisco naquelas bandas). E sabe curá-los,
“só não sei como curar a velhice.” A relação com o galo Macho, o animal de
estimação de Rafa, não é menos curiosa. Várias vezes Mike lhe diz que o bicho
irrequieto, metáfora de tantas coisas, dava na pior das hipóteses um bom
churrasco. Depois é Macho a provar que é bravo e melhor 'ator', salvando de
sarilhos os dois fugitivos quando as coisas dão para o torto.
E porque é que Clint, que tem hoje o rosto
do mais conservador dos cineastas americanos, é aquele que, neste e noutros
filmes, está sempre a fugir à polícia, neste caso aos “federales” mexicanos, em
contínua desobediência à Lei? E porque é que Clint, homem de direita tão
criticado pelas suas convicções políticas, é aquele que agora parte para o lado
dos desempossados do outro lado da fronteira, tão pobres como pobres são estes
seus velhos a cair da tripeça? Também aqui há muito a dizer porque uma das
maiores riquezas de “Cry Macho” é o modo apaixonante como o texano Mike vai
abraçar quem é diferente dele, os seus vizinhos do sul, celebrando o México
como país, como cultura, como maneira de ser.
Na manhã seguinte à noite das confissões,
Mike e Rafa têm um pequeno-almoço à porta da capela. É Marta quem disso se
encarrega, a dona do bar em que os dois fugitivos encontraram refúgio. É uma
personagem fabulosa interpretada por Natalia Traven, também ela avó (de quatro
netas) e... melhor ainda, viúva como Mike. Marta tem uma velha juke box
avariada no bar. Mike arranja-a e sai de lá 'Sabor a Mí', o bolero de Álvaro
Carrillo (era a canção favorita do cineasta português Fernando Lopes), na
versão de Los Panchos que a popularizou e que o cinema fixou tantas vezes,
cantada por Eydie Gormé.
E no filme em que Mike ensina a Rafa que
“essa coisa de ser macho esta sobrevalorizada” - e aqui ele refere-se não ao
galo mas ao machismo que o miúdo julga necessitar para se fazer homem - é com a
entrada em cena de Marta que Clint nos prova que as palavras no cinema só valem
qualquer coisa quando as imagens e os sons conseguem responder-lhes à mesma
altura. “Cry Macho” é digníssimo de ponta a ponta, podia ter dispensado outras
figuras secundárias mais caricaturais, mas aqui sim, é quando Mike e Marta
olham um para o outro que o filme se sedimenta.
E sedimenta-se sem melancolia nem ponta de
pieguice, ao contrário do que já se viu escrito em críticas apressadas, porque
o que aqui está em causa é um último 'hurrah': Mike a agarrar-se à vida como
quem se agarra aos últimos dias que lhe restam. Ganha então o afeto ao
interesse. Ganha o presente ao passado. E pouco importa quem voltará a
atravessar a fronteira para o Texas, pouco importa quem tomará conta do galo. Quando
Marta chega com aquela aura radiosa a “Cry Macho”, rapta o filme para ela. (…)»
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