domingo, 19 de setembro de 2021

FILME |«Cry Macho»







Sobre o filme, do que Francisco Ferreira escreveu no semanário Expresso:

«(...)É “Cry Macho” a história de um velho que anda à procura de um miúdo no México? Não, esse é só o ponto de partida: aquilo de que o velho anda à procura é de uma reconciliação com ele próprio. E depois chega a cena fulgurante da capela da Virgem Maria naquela terriola de nenhures no deserto mexicano, em que Mike e Rafa, outra vez com o carro empanado, aproveitam para passar a noite. É um grande momento do cinema recente de Clint. O velho já não acredita em nada. O miúdo que lhe serve de tradutor entre castelhano e inglês de 'pueblo' em 'pueblo' já é mais mexicano que americano e indigna-se com a intenção de Mike em dormir debaixo de teto sagrado.

“Mike, acreditas em Deus?” / “Não sei, acho que sim” / “És católico?” / “Não sou católico, rapaz.” / “Todos nós somos filhos de Deus, tu também?” / “Bom, somos todos filhos de alguém...” E é depois deste diálogo notável que Mike abre o coração, confessando ao miúdo e à audiência o que o feriu no passado, “e eu não servi para grande coisa depois disso.” Quem consegue ainda filmar hoje este tipo de coisas no cinema americano? Ser tão intenso, tão emocional, num western em scope com a linha do horizonte a rasgar a meio o enquadramento? E depois de Clint, quem os fará?

Clint trabalha que se farta em “Cry Macho”, está em quase todos os planos, vai esmurrar um tipo, vai domar um cavalo (com ajuda de duplos e de truncagem cinematográfica, pouco importa), deve ter posto os médicos em polvorosa durante a rodagem (foi em solo americano, no Estado do Novo México, durante a pandemia). Recorde-se que ele tem 91 anos. Mike também trata dos animais como se fosse São Francisco (algures no filme chamam-lhe o Doutor Dolittle dos livros infantis de Hugh Lofting, que deve servir de equivalente a São Francisco naquelas bandas). E sabe curá-los, “só não sei como curar a velhice.” A relação com o galo Macho, o animal de estimação de Rafa, não é menos curiosa. Várias vezes Mike lhe diz que o bicho irrequieto, metáfora de tantas coisas, dava na pior das hipóteses um bom churrasco. Depois é Macho a provar que é bravo e melhor 'ator', salvando de sarilhos os dois fugitivos quando as coisas dão para o torto.

E porque é que Clint, que tem hoje o rosto do mais conservador dos cineastas americanos, é aquele que, neste e noutros filmes, está sempre a fugir à polícia, neste caso aos “federales” mexicanos, em contínua desobediência à Lei? E porque é que Clint, homem de direita tão criticado pelas suas convicções políticas, é aquele que agora parte para o lado dos desempossados do outro lado da fronteira, tão pobres como pobres são estes seus velhos a cair da tripeça? Também aqui há muito a dizer porque uma das maiores riquezas de “Cry Macho” é o modo apaixonante como o texano Mike vai abraçar quem é diferente dele, os seus vizinhos do sul, celebrando o México como país, como cultura, como maneira de ser.

Na manhã seguinte à noite das confissões, Mike e Rafa têm um pequeno-almoço à porta da capela. É Marta quem disso se encarrega, a dona do bar em que os dois fugitivos encontraram refúgio. É uma personagem fabulosa interpretada por Natalia Traven, também ela avó (de quatro netas) e... melhor ainda, viúva como Mike. Marta tem uma velha juke box avariada no bar. Mike arranja-a e sai de lá 'Sabor a Mí', o bolero de Álvaro Carrillo (era a canção favorita do cineasta português Fernando Lopes), na versão de Los Panchos que a popularizou e que o cinema fixou tantas vezes, cantada por Eydie Gormé.

E no filme em que Mike ensina a Rafa que “essa coisa de ser macho esta sobrevalorizada” - e aqui ele refere-se não ao galo mas ao machismo que o miúdo julga necessitar para se fazer homem - é com a entrada em cena de Marta que Clint nos prova que as palavras no cinema só valem qualquer coisa quando as imagens e os sons conseguem responder-lhes à mesma altura. “Cry Macho” é digníssimo de ponta a ponta, podia ter dispensado outras figuras secundárias mais caricaturais, mas aqui sim, é quando Mike e Marta olham um para o outro que o filme se sedimenta.

E sedimenta-se sem melancolia nem ponta de pieguice, ao contrário do que já se viu escrito em críticas apressadas, porque o que aqui está em causa é um último 'hurrah': Mike a agarrar-se à vida como quem se agarra aos últimos dias que lhe restam. Ganha então o afeto ao interesse. Ganha o presente ao passado. E pouco importa quem voltará a atravessar a fronteira para o Texas, pouco importa quem tomará conta do galo. Quando Marta chega com aquela aura radiosa a “Cry Macho”, rapta o filme para ela. (…)»

 





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