segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

ANNA KARINA | «o cinema francês é órfão. Perdeu uma das suas lendas»



Para assinalarmos a perda de Anna Karina, não só dos franceses, escolhemos de João Lopes no DN:

Anna Karina viveu a sua vida

Com a morte de Anna Karina, redescobrimos, em particular, a herança artística do seu trabalho nos filmes realizados por Jean-Luc Godard: "Viver a sua Vida" pode servir de mote para as nossas memórias.

Em Viver a sua Vida (1962), um dos filmes em que foi dirigida por Jean-Luc Godard, então seu marido, Anna Karina interpreta Nana, uma prostituta de Paris. Trata-se de um dos momentos em que Godard integra o tema da prostituição nas suas narrativas, direta ou indiretamente expondo a mercantilização do corpo e o esvaziamento da alma como componentes viscerais do "progresso" nas sociedades modernas. Ao tema regressaria, por exemplo, em duas produções de 1967, Duas ou Três Coisa sobre Ela e Antecipação (episódio da longa-metragem A Mais Antiga Profissão do Mundo, também com Karina), ou Salve-se quem Puder (1980).
Seja como for, convém lembrar que não há em Viver a sua Vida nada que se possa confundir com a sociologia de bolso que, hoje em dia, muitas vezes, vai pontuando as mais banais narrativas (cinematográficas e televisivas) que se escudam na "gravidade" dos respetivos temas. Ao filmar Karina como Nana, Godard constrói uma das mais belas confissões de amor que a história do cinema regista - em última instância, Viver a sua Vida é uma crónica intimista sobre o olhar do cineasta face a uma mulher.
Momento sublime desse intimismo é a cena em que uma personagem masculina lê para Nana O Retrato Oval, de Edgar Allan Poe, publicado em 1842. O brevíssimo conto de Poe condensa o misto de ternura e crueldade que pode marcar a relação de um artista com o seu modelo. Dito de forma esquemática, nele se narra a tragédia de um pintor que, obcecado pela sua arte, vai pintando o retrato da sua mulher cujo estado de saúde é cada vez mais frágil; ao concluir, siderado pela intensidade do seu labor, proclama que aquele retrato "é a própria vida" - nesse momento, descobre que, enquanto posava, a sua mulher morreu. (…). Continue a ler.


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