quarta-feira, 3 de março de 2021

MIGUEL TIAGO | «(...)É chamando o homem para a luta da mulher, o branco para luta do negro, o hétero para a luta do gay e não chamando a uns privilegiados e a outros coitados que a luta vai triunfar. Hostilizar uns em suposta defesa de outros, prejudica todos e poupa os verdadeiros privilegiados, os que nos seus tronos riem enquanto os súbditos se insultam»

 


 Leia na integra aqui, no Post «Basta de Privilégios!» de Miguel Tiago


Excerto:«(...)Da mesma forma, não se pode dizer que existe um privilégio masculino porque uma mulher ganha menos ou porque a mulher corre riscos de violação muito superiores aos que corre um homem. Nesse caso, não se pode considerar privilégio o direito de andar na rua sem ser violado, nem se pode considerar privilégio receber um salário superior, na medida em que não se pretende retirar nenhum desses direitos ao homem, mas sim assegurá-los à mulher. 

Além disso, não está ao alcance do suposto privilegiado abdicar do seu privilégio, nem pode ser isso que se pretende. Mas não deixa de nivelar por baixo a utilização do conceito “privilégio”. Se eu tenho um privilégio por receber mais como homem, abdicando desse “privilégio” e ganhando o mesmo que a mulher, acaba-se o privilégio? Ou, pelo contrário, concentra-se e aprofunda-se o real privilégio das classes dominantes?

A utilização do conceito de privilégio, que parece estar ainda quase cingida àqueles que, pretendendo-se progressistas, integram as camadas do proletariado mais distantes do processo produtivo, cumpre um papel social e político. Por um lado, tal como outros refúgios, serve de uma espécie de expiação dos complexos de culpa da moral judaico-cristã que enforma uma boa parte de um proletariado mais afastado do processo produtivo e de uma “pequena burguesia democrática”; por outro, hostiliza aqueles que de forma alguma se reconhecerão como privilegiados num mundo em que são diariamente explorados, afastando-os de uma perspectiva de solidariedade de classe e de combate a todas as discriminações.

Um operário que ganha o salário mínimo nacional, homem, branco, não vai reconhecer-se como privilegiado por ter direitos básicos enquanto outros, por qualquer motivo não os têm. A luta e a solidariedade de classe são aqui os mais poderosos instrumentos de alargamento dos direitos, muito mais do que a abdicação de privilégios. Ou seja, o operário não pode abdicar do tal “privilégio” que lhe é atribuído pela banalização desse conceito. A cristalização em torno desses conceitos importados, muitos deles provenientes dos meios académicos da dita “esquerda americana”, relega todos os que se recusam a adoptá-los para o canto dos ultrapassados, dos machistas, dos racistas, dos conservadores, etc., contribuindo activamente para acantonar visões, dividir onde se devia unir. A ostracização a que são sujeitos todos os revolucionários e revolucionárias que não acatam acriticamente as teses burguesas do “feminismo liberal” é bem ilustrativa do impacto negativo que as intrusões do pensamento e ideologia burgueses têm no movimento progressista.

Podemos relembrar a forma como em Portugal muitos pretenderam tratar os trabalhadores com vínculo como privilegiados, remetendo a exploração para uma classe acabadinha de inventar e rotulada de “precariado”. O que essa estratégia provocou foi a divisão da classe trabalhadora entre trabalhadores e trabalhadores privilegiados. Ora, se o contrato é um privilégio, então a precariedade é a norma. Assim se fez, retirou-se o privilégio a centenas de milhares e generalizou-se a precariedade. Numa perspectiva da eliminação do privilégio, estamos hoje melhores!

Colocar em causa termos como “género”, “privilégio branco”, “liberdade de prostituição”, entre muitos outros, e sua utilidade numa perspectiva revolucionária é hoje visto pelos seus adeptos como uma manifestação de incompatibilidade, não raras vezes redundando no insulto, na segregação e na divisão das lutas e dos seus protagonistas.

A barreira parece mais ténue e menos identificável, mas na realidade é cada vez mais evidente e profunda. A barreira entre o pensamento dos comunistas, dos revolucionários e de outros que, consciente ou inconscientemente, fazem o trabalho das classes dominantes entre os dominados.

É chamando o homem para a luta da mulher, o branco para luta do negro, o hétero para a luta do gay e não chamando a uns privilegiados e a outros coitados que a luta vai triunfar. Hostilizar uns em suposta defesa de outros, prejudica todos e poupa os verdadeiros privilegiados, os que nos seus tronos riem enquanto os súbditos se insultam».

 


Sem comentários:

Enviar um comentário