sexta-feira, 5 de agosto de 2022

BERNARDINE EVARISTO |«MR. LOVERMAN» | «No seu penúltimo e divertidíssimo romance, Bernardine Evaristo narra os dilemas de um emigrante de Antígua em Londres, quando resolve sair do armário aos 74 anos»

 



«(...) Quando se inicia a ação de “Mr. Loverman”, o sétimo romance de Bernardine Evaristo, a paz podre atingiu há muito o seu limite. O septuagenário Walker não aguenta mais o vazio conjugal, porque sabe que já não lhe restam muitos anos nesta Terra. Decide por isso vivê-los em pleno, finalmente ao lado do verdadeiro amor da sua vida. Mas isso apenas acontecerá se ele reunir a coragem necessária para exigir o divórcio — uma coragem que nunca teve até à data. Este dilema funciona como o motor da narrativa, o seu esteio, a questão sempre presente e que precisa de uma resposta, mas coexiste com vários outros aspetos da existência de Barry, que se acumulam e sobrepõem na lógica expansiva do livro: da relação problemática com as duas filhas, que o acusam da infelicidade da mãe, à aproximação a Daniel, o único neto, que termina abruptamente numa “catarse acidental” (um sair do armário trapalhão diante dos amigos deste) que acaba por ser decisiva. Em fundo, ou à volta destas múltiplas tensões pessoais, há conversas e mais conversas que medem o pulso ao estado do mundo — e em particular da sociedade britânica — no início da segunda década do século XXI, em plena recessão pós-colapso do sistema bancário.
É muito evidente que Bernardine Evaristo não pretende centrar-se apenas no torvelinho doméstico dos Walker e suas ondas de choque. Por trás desta comédia de enganos insinuam-se vários temas recorrentes na sua obra: a integração das comunidades imigrantes, as tensões raciais, as discriminações sexuais, as heranças do colonialismo e os ecos da experiência histórica da escravatura. Estes tópicos aparecem espontaneamente, a meio de um diálogo ou de uma passagem descritiva, e Evaristo consegue quase sempre que pareçam orgânicos e não programáticos. Ou seja, surgem naturalmente no contexto do que acontece às personagens, como se emanassem das próprias circunstâncias em que estas se encontram.
Ao invés do que acontece num livro anterior, “Raízes Brancas”, uma distopia engenhosa mas algo forçada, cuja premissa assenta na inversão brutal da realidade histórica (e se a escravatura tivesse sido exercida ao contrário, pelos negros sobre os brancos?), as ideias de Evaristo não nos surgem aqui a traço grosso, mas como que à transparência. E sobretudo com um sentido de humor irresistível, um jubiloso tom sarcástico, que faz deste romance um dos mais divertidos que nos foi dado ler nos últimos anos. (...)». do TEXTO  de JOSÉ MÁRIO SILVA no semanário Exexpresso | 5 AGO 2022


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