domingo, 4 de agosto de 2024

«Mitra, o "depósito" dos miseráveis»

 


«Nos armazéns de uma antiga fábrica de cortiça, em Lisboa, a ditadura prendeu quem queria ‘limpar’ das ruas — pedintes, vadios, aleijados, loucos e prostitutas. Era a cidade dos mal-amados. Rapavam-lhes o cabelo, metiam-lhes uma farda de cotim e um número ao pescoço. Controlados pela PSP, mais de 20 mil adultos e crianças foram ali escondidos do olhar público, muitos por várias décadas. Catarina Maria entrou há 70 anos. E ainda lá está

Por Joana Pereira Bastos e Raquel Moleiro (texto), Tiago Miranda (fotografias) e Rúben Tiago Pereira (Vídeo)

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Começa assim:

Naquele dia, os dois irmãos afastaram-se de casa mais do que o costume. A dois quilómetros, já na Graça, pararam num sítio onde a calçada perdera as pedras e a terra fazia covas perfeitas para jogar ao berlinde. Estavam a brincar quando um polícia os chamou. “Acompanhem-me à esquadra!” Carlos e Jorge, com 7 e 5 anos, obedeceram, a medo. Durante hora e meia interrogaram-nos sobre o que faziam. E eles sem nada de monta para dizer, só que escaparam de manhã à escola para brincar, que eram órfãos de mãe e que o pai estivador os esperava. O relato não convenceu o agente, que os confundiu com ladrões de laranjas, meninos pobres que matavam a fome nas quintas de Lisboa.

“Normalmente só andávamos onde toda a gente nos conhecia, mas nesse dia distanciámo-nos, até para lá do quartel de Sapadores. Ali era tudo barracas e os polícias pensaram que a gente também pertencia àquelas pessoas. Disseram-nos: ‘Vocês são uns malandros. Já vão ver para onde vão’ e meteram-nos numa carrinha com dois guardas”, recorda Carlos Silva. Foi há 68 anos mas nunca mais esqueceu o episódio e ainda menos o “pesadelo” onde os enfiaram a seguir.

A carrinha azul escuro, de transporte de presos, conhecida por ‘ramona’, parou no Beato, junto aos portões de ferro de uma antiga fábrica de cortiça, transformada em 1933 no Albergue de Mendicidade de Lisboa. Ao fundo, na fachada do edifício fronteiro, na extremidade de uma alameda ladeada a pavilhões de camaratas, lia-se, em maiúsculas, um nome que se tornou maldito: Mitra. (...)»

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 (na Revista do semanário Expresso desta semana)


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