«Do discurso público dos governantes às normas do Parlamento
Europeu, a linguagem inclusiva e neutra
no género veio para ficar e há quem pense
redefinir a língua. Nem todas as pessoas se identificam com isto
TEXTO BERNARDO MENDONÇA ILUSTRAÇÃO GONÇALO VIANA
Este verão, o escritor Afonso
Reis Cabral assinou uma crónica no “JN” em que criticava o facto de o Museu da
Língua Portuguesa, que foi reinaugurado a 31 de julho em São Paulo, no Brasil,
ter publicado nas redes sociais um texto em que incentivava a que o visitassem
“todos, todas e todes”. Uma formulação do museu para uma linguagem inclusiva
que convocava homens, mulheres e pessoas não-binárias que desagradou ao
escritor, que considerou “uma corrupção disparatada da língua que não serve a
ninguém”.
O
escritor, formado em Estudos Portugueses e Lusófonos, distinguido com o Prémio
Saramago e Leya, afirma ao Expresso que critica estas novas abordagens da
língua, mas não pessoas ou identidades. “Estes temas são naturalmente
sensíveis, mas hoje em dia parece que não se podem debater ideias sem renegar
pessoas. Quando digo que este tipo de linguagem inclusiva não é exequível, não
estou a desvalorizar a vida das pessoas, mas este tipo de propostas é de origem
académica, não é exequível e não está firmado.”
Afonso
recorda que a proposta para a neutralidade de género na língua começou por
defender o uso do @ [no lugar da vogal o ou a], depois passou a ser o uso do X.
E, mais recentemente, sugere o uso do “e” como marca do neutro [ex.: “todes” em
vez de “todos”]. “Acontece que se pensarmos na própria língua, apesar de
marcada e naturalmente binária, o masculino plural é um masculino gramatical.
Quando dizemos ‘todos’, estamos a abarcar o masculino, o feminino e etc. Não é
exclusivo, não é contra ninguém, foi assim que a língua evoluiu.”
O
que é certo é que o debate sobre a linguagem neutra de género ou inclusiva veio
para ficar, divide opiniões e discute-se ao mais alto nível em todo o mundo.
São cada vez mais as instituições e personalidades do Governo, da política, do
ativismo e da comunicação que procuram usar uma linguagem inclusiva e
não-discriminatória. Sem invisibilizar mulheres, pessoas ‘trans’ ou
não-binárias na linguagem ou no chamado ‘falso’ masculino neutro. E neste campo
há quem sugira mesmo alterar o idioma e inventar palavras novas, onde entram
novas grafias de palavras, como “amigxs”, “tod@s” ou “todes”, ou “elu” em vez
dos pronomes “ele” e “ela”.
A
vice-presidente da Assembleia da República e deputada do PS Edite Estrela
levanta grandes dúvidas sobre uma alteração do idioma, mas tem uma posição
clara sobre a linguagem neutra. “Usar uma linguagem que desconstrua a ideia do
masculino como universal não é pleonasmo, muito menos erro, é promover a
igualdade de género. Aceitar o masculino como universal é não reconhecer às
mulheres a condição de sujeitos, deixando-as invisíveis, logo inexistentes.”
E
recorda que a história da língua portuguesa ajuda a perceber a questão: o
português transformou-se a partir do latim vulgar, que possuía os géneros
masculino, feminino e neutro. Mas, com o tempo, os idiomas vindos do latim
suprimiram o género neutro, considerando que o género masculino cumpria essa
função. “Daí advém o que podemos classificar de ‘machismo’ da língua
portuguesa, uma vez que a sociedade romana era rigidamente patriarcal. A língua
inglesa não faz qualquer distinção de género a partir de maiorias: sejam duas
mulheres e um homem, sejam dois homens ou duas mulheres, usa-se sempre “they”.
Em português, na falta do neutro, usemos uma linguagem inclusiva, falando deles
e delas, dos portugueses e das portuguesas.”
Sobre esta matéria, relembra que na recente cerimónia de homenagem ao diplomata Aristides de Sousa Mendes — a concessão de um lugar no Panteão Nacional —, o Presidente da República dirigiu-se aos presentes como “suas excelências”, expressão neutra que não sobrepôs o masculino sobre o feminino, e que o presidente da Assembleia da República usou linguagem inclusiva no discurso. “Referiu a presidente do Tribunal Administrativo [Dulce Neto, a primeira mulher a presidir a um tribunal superior em Portugal], não a englobando na designação genérica de ‘presidentes dos supremos tribunais’. E fê-lo porque importa destacar uma mulher no Supremo Tribunal Administrativo. E, no meu caso, referiu senhora vice-presidente da AR e senhores vice-presidentes. Fez a distinção.”(...)» - do semanário Expresso de 23 OUT 2021
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