«Cresci com a ideia de que para amar era preciso sofrer. As mulheres da minha família assim me mostravam, a literatura e o cinema que me acompanharam na infância e adolescência também. Amor era sinónimo de sacrifício. Abdicar do trabalho para cuidar do marido e dos filhos foi a vida da minha mãe, avó e bisavó. Na família, o amor demonstrava-se com um carinho ou uma bofetada. Em criança, orgulhava-me de ser uma pirralha endiabrada que era controlada à base de mimos, castigos e palmadas. O amor também castiga. Ao longo do tempo, fui aprendendo a romantizar episódios de agressão física e psicológica, e a olhar para a violência como uma forma de resolver conflitos.
Esta noção pervertida de amor, refletiu-se nas minhas primeiras relações. Fui
vítima de violência psicológica e física num namoro de adolescência, onde me
tornei também agressora. Não é fácil dizer isto: à medida que ia sendo vítima
de violência psicológica sentia-me legitimada para agir da mesma forma. Não
estávamos em pé de igualdade, mesmo como agressores: eu partia de uma posição
de submissão, e agia perante abusos maiores. Quando a situação evoluiu para
violência física, defendi-me. Terminei a relação pouco depois disso.
Infelizmente, sei que estou longe de ter sido a única pessoa a viver uma
relação abusiva. Não serei também a última. Nem todas as situações de violência
doméstica têm o mesmo desfecho. Nem todas as violências são praticadas da mesma
forma. Mas todas deixam marcas, ainda que algumas não sejam visíveis. A
violência nas relações de intimidade é complexa e comum. Acima de tudo, é
perigosa.
Em 2020, dos 30 homicídios registados pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
em contexto de violência doméstica, 26 das vítimas eram mulheres. Entre 2014 e
2019, foram assassinadas 111 mulheres em relações de
intimidade. Mulheres como Lúcia Rodrigues, assassinada a tiro pelo
companheiro, Ana Paula, estrangulada pelo marido, ou Vera Silva, espancada pelo
ex-companheiro, são apenas alguns dos nomes que constam do Relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas
da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), de 2019.
A violência doméstica contra cônjuge ou análogo é a tipologia criminal mais
participada em Portugal: 23 439 participações só no último ano, de acordo com o
Relatório Anual de Segurança Interna de 2020.
O que chega aos tribunais é ainda a ponta do iceberg. No ano passado foram
abertos 33 973 inquéritos judiciais, 21 327 dos quais
foram arquivados (63%). Apenas 5 043 se tornaram acusações concretas.
Para falar de tudo isto, entrevistámos Sofia Neves, doutorada em psicologia
social, professora e investigadora na Universidade da Maia e membro integrado
do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género da Universidade de Lisboa. É
presidente da Plano i, uma associação não-governamental de
promoção da igualdade que tem feito investigação sobre violência doméstica e
trabalhado na intervenção direta com as vítimas.
Ouve aqui a entrevista ou na tua app de
podcasts. E diz-me o que achaste».
Um abraço,
Maria Almeida
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