segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

«bondade»

«(...)  Não me agrada que a bondade, no século XXI, se tenha tornado numa atividade implementada após gestão do projeto, com fases, objetivos e balizas. Ser solidário com causas tornou-se o formato aceitável de bondade. A palavra não é sequer usada. Não se diz “seja bondoso com as pessoas sem abrigo”. O que se diz, é: contribua para a causa. Estamos todos a contribuir, mas na verdade ninguém faz nada. E os sem-abrigo continuam ao frio, de barriga cheia e com mais cobertores. Também contribuímos com as grandes campanhas de recolha de alimentos. Deixamos duas embalagens de massa e uma garrafa de azeite para o Banco Alimentar contra a Fome, à porta do supermercado. Somos mesmo bonzinhos!, podemos pensar, privadamente, comovidos com a nossa atitude desprendida. Mas pronto. Até à próxima campanha, está feito. Não querendo pôr em causa estas campanhas, que devem existir, cabe-me afirmar que é um exercício de bondade sem destino certo nem compromisso. Não alcançamos nada do que se seguirá. Confiamos nos outros. É uma ajuda abstrata.
Há uma outra forma de bondade que não desdenho, mas não me basta: defender causas nas redes sociais ou nas ruas. Manifestar apoio à defesa do meio ambiente, de uma sociedade sem racismo, sem especismo, sem diferenças de género e classe. É uma bondade que vai à base e está devidamente consagrada. Mas é fria. Tem um lado militar que não me agrada.
A isto acresce que cheguei há poucos dias de Paris, cidade que escolhi para passar uns dias de férias. Paris acabou por ser um enorme balde de água gelada. Um lugar desumanizado. Uma cidade que perdeu a bondade nos meandros da liberdade. Igualdade e fraternidade. (...)». Excerto da crónica de Isabela Figueiredo no semanário Expresso/Ideias desta semana. 

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