segunda-feira, 19 de setembro de 2022

«Daniel e Daniela»





“Daniel e Daniela” fala do colonialismo, da mestiçagem cultural - e põe-nos a pensar

JORGE LEITÃO RAMOS

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Excerto do texto de Jorge Leitão Ramos no semanário Expresso desta semana:

«Daniel Nunes é, pelo menos, uma pessoa singular. Mestiço, cabo-verdiano cruzando um pai branco e uma mãe negra, homem de mais de 80 anos (nasceu em 1935) e com muita África na vida — Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau — agora com Portugal como lugar de morada, estranhou que a filha, adolescente, chegasse da escola e anunciasse que tinha uma nova colega, escurinha. Foi interrogar a professora, perguntando-lhe de que cor era a filha. “A sua filha é escurinha”, teve como resposta. Mas Daniel Nunes sabe que ‘escurinha’ não é designação de etnia, de cor de pele ou de coisa alguma com ela relacionada. E terá dito à professora: “A minha filha é preta.” É assim que começa “Daniel e Daniela”, o documentário de Sofia Pinto Coelho que agora se estreia em sala, coproduzido pela Ukbar Filmes e pela SIC, o que indicia divulgação televisiva, a cumprir daqui a algum tempo. À ambiguidade da questão no âmbito escolar reagiu Daniel com a decisão de falar com a filha, Daniela, sobre a sua identidade, a história paterna, a negritude, levando-a aos lugares onde essa história aconteceu: Cabo Verde, terra-mãe, São Tomé, onde viveu o período mais feliz da sua vida e de onde foi constrangido a sair após a independência, em 1976, Guiné-Bissau onde Daniela nasceu e viveu até completar a instrução primária. O filme testemunha esse périplo, uma viagem, o reencontro com amigos e familiares, memórias, considerações sobre a complexa e secular relação portuguesa com os povos africanos. A escravatura, o racismo, o colonialismo, os entraves ao desenvolvimento económico da África subsariana, as grandes questões gerais, digamos assim, cruzam-se, depois, com detalhes do dia a dia e que tanto podem dizer respeito às tradições guineenses do fanado como à memória traumática das grandes fomes que assolaram Cabo Verde durante a II Guerra Mundial. Tudo em tom brando, dando tempo ao tempo, e sem a preocupação estrita de engrenar uma narrativa que seja cronológica e explicativa. Talvez seja ousado dizer, mas eu avento, que Sofia Pinto Coelho pôs entre parênteses a sua condição de jornalista e preferiu ir dando respiração ao fluir das imagens e dos sons. Em vez de contar uma história, em vez de fazer reportagem, acompanhar duas pessoas muito diversas, deixar ver algo sobre elas e o mais que elas destilassem. A ternura de um pai com idade para ser avô da jovem filha, as vontades dela (ser médica) e as recusas (jamais Presidente da República de Cabo Verde, da Guiné-Bissau ou de Portugal), as controversas opiniões dele, muito ao arrepio do que hoje está em voga. Assim, se o colonialismo é sempre mau, o nosso foi o mais brando de todos, porque o povo português é, por natureza, brando, diz Daniel. (...)».

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