Eu estava no lugar do morto. Ou do pendura. Como lhe queiram
chamar. E ao volante do veículo estava ‘Maria’, chamemos-lhe assim, uma mulher
alentejana muito castiça e genuína, que carregava no sotaque, no acelerador e
na simpatia. No banco de trás, seguia uma das escritoras que mais adoro ler e
escutar, Lídia Jorge.
Seguíamos rumo à biblioteca municipal de Beja, no Alentejo, para
nos juntarmos a um ciclo de conversas no dia em que se celebrava o centenário
desse lugar com muita história, livros e cultura de comunidade.
‘Maria’, a motorista alentejana
‘Maria’, motorista de profissão, dava-nos conta que anda há uma
vida nesta coisa dos festivais literários e ciclos de conversas, a fazer
piscinas de asfalto entre Lisboa e Beja, noite e dia, e que já perdeu a conta
às tantas madrugadas passadas em claro, a desafiar o sono e cansaço, para
trazer escritoras e escritores para o interior do alentejo, de modo a
espantarem o isolamento e criarem mais pontes daquela população com o mundo.
A motorista ‘Maria’ comentou que conhece muitos escritores só pelo
primeiro nome, não sabe os seus apelidos, nem o que escrevem. Basta-lhe a
morada e o contacto da dona Lídia, do senhor Gonçalo, do senhor José Luís, e
por aí fora.
Recordei-me nesse momento do que me dissera, numa
entrevista, o escritor e poeta surrealista Alberto Pimenta, que quando
esteve doente, deitado numa maca do hospital, o tratavam apenas por “senhor
José”, o primeiro nome registado no seu Cartão de Cidadão.
O que lhe trazia a noção precisa de que nada valem presunções,
medalhas e águas bentas - a chatice do ego e da pedantice de uns e outras - na
hora da doença ou da morte.
Mas voltemos à viagem de carro que estava a relatar. A dado
momento, quando passámos por um determinado vilarejo alentejano, ‘Maria’ atirou
uma frase que entrou como uma bala na minha orelha. Não fez sangue, mas fez
comichão.
“Os ciganos até têm medo de voltar!”
“Aqui nesta aldeia os ciganos foram todos, todos expulsos.” Como?
Mas qual a razão para esse episódio insólito? - quisemos saber. “O pessoal aqui não brinca. Os ciganos até
têm medo de voltar.”- relatou ‘Maria’.
E deu conta que aquela população, especificamente de uma
determinada vila, “não gosta de misturas”, e que por alguns desaguisados,
estranhezas ou mal entendidos resolveram a coisa de forma radical. E expulsaram
a comunidade cigana que ali vivia. ‘Maria’ não precisou quando isso aconteceu,
apenas que aquela população não gostava de ter ciganos por perto.
Lídia, sábia a gerir a escuta, rompeu o silêncio desconfortável
que se instalara com a pergunta: “Mas a comunidade cigana como se costuma dar
com a restante população alentejana?”
A resposta foi surpreendente. “Muito bem. Até se dão muito bem.” E
indicou outras zonas da regiões, onde a comunidade cigana se relaciona de forma
pacífica, e até cúmplice, com a população local. E contou que, a seu ver, eram
“boa gente”. (...)».
A lenga-lenga do costume
Embora tenha também relatado a estranheza de não saber ao certo
onde obtêm dinheiro, de que acha que “trabalham pouco, são ricos, têm bons
carros”, e que alguns “vivem à conta dos subsídios”, e não andam a dar no duro
como ‘Maria’. Mas tem a certeza disso? “Não. Mas é o que todos dizem.” E
referiu que agora é comum também se ver muitos imigrantes do Paquistão e da
Índia nas ruas. “Agora só se vê disso.”
A lenga-lenga do costume, que continua a sobressair nos estudos. Na política e no preconceito, a
percepção é sempre mais gulosa e eficaz do que a realidade. E cada pessoa
acredita no que quer acreditar.
Mas ‘Maria’ sublinhou com sotaque cerrado que, no fundo, se dava
bem com os ciganos do Alentejo, “pessoas gentis”.
“Um sotaque que encerra uma alma aberta”, comentou Lídia comigo.
Carentes de misericórdia
E Lídia partilhou ainda depois que o título “improvável” do seu
último romance “Misericórdia”, o qual temia que fosse visto como um livro
beato, ganhou outras dimensões e significados nestes tempos mais polarizados.
“As pessoas estão carentes de uma atitude de misericórdia umas em
relação às outras. Com um mundo tão extremado, com ódio, guerra, e apesar do
sagrado egoísmo das nações, as pessoas estão a clamar baixinho por
misericórdia.”
Certo é que a realidade da ciganofobia no
Alentejo, que André Ventura tem sabido manipular como ninguém, há muito que é
notícia e dá conta de mais almas fechadas do que seria razoável. “Há muita
gente daqui que só vota em quem diz mal dos ciganos. E essa pessoa é André
Ventura.”, esclareceu ‘Maria’.
Em 2009, o antropólogo André Correia
reportava no
ciclo de palestras Pobreza e Comunidades Ciganas que no Alentejo, famílias ciganas pobres, sem casa, tinham dificuldade
em fixar-se e eram "forçadas" a circular como nómadas pela região,
confrontando-se com a "tolerância temporária" ou com a "expulsão
rápida".
Portugal devia “pedir desculpa aos ciganos”
Dez anos depois, o antropólogo e investigador José Pereira Bastos,
afirmava que Portugal devia “pedir
desculpa aos ciganos” e considerava que no nosso país, os ciganos “são aquilo que
em psicanálise se chama o ‘mau objecto'”.
E recordou um estudo que fez sobre as “Minorias Étnicas em
Portugal” que veio mostrar que “não há qualquer comparação” entre o racismo
de que é alvo a comunidade cigana e qualquer outra comunidade.
Nas legislativas de 2019, a jornalista Liliana Valente deu
conta desta mesma alienação e crença de certas regiões alentejanas que foram
sensíveis ao discurso populista e ciganofóbico de André Ventura.
Recordo que no concelho de Moura foram precisamente as freguesias com
comunidades ciganas mais relevantes, aquelas em que a população mais colocou a
cruz em Ventura. E ali, o discurso passava mais pela percepção do que pela
realidade.
Neste conflito o que funciona como gasolina para a fogueira do
ódio é precisamente a questão do rendimento.
“O discurso de Ventura, que repete à exaustão, de que há metade
a trabalhar para a outra metade que não trabalha, é fósforo a pegar no
rastilho.” E se os dados
mostram que a comunidade cigana recebe uma ínfima parte do Rendimento Social de
Inserção, apenas 3,8%, o que vale é a percepção de que os ciganos recebem mais
do que quem trabalha.
Ciganos sem acesso ao trabalho
De acordo com o relato da bibliotecária de Moura, Zélia Parreira, nessa tal peça jornalística
publicada pelo Expresso, os
vizinhos quando viam pessoas da etnia cigana a levantar os cheques do RSI nos
correios, ficavam com a ideia de que lhes estava a ser dado dinheiro por
nada. Mas essas pessoas não trabalham porque "não têm
acesso ao trabalho, não vamos fingir que têm".
Quem dá trabalho aos ciganos? As
respostas foram dadas pela ativista cigana Maria Gil e por mim, também em
2019, aqui neste vídeo “2:59 para explicar o mundo”.
Importa dar conta que durante o período da
pandemia o populismo cresceu muito, sobretudo direcionado para a população
cigana, acompanhado de “discursos de ódio e de incitamento ao ódio", em
Portugal e na Europa que retiram características humanas às pessoas ciganas.
No final do ano passado, uma pesquisa do Instituto de Ciências Sociais (ICS), publicada
pelo Expresso, do investigador Pedro
Magalhães e de Rui Costa Lopes, dava conta que a nível nacional, a prevalência
da discriminação contra esta minoria étnica é estimada em 30%
Aumento do anti ciganismo
E
se a ciganofobia é evidente em todos os estudos que abrangem estas comunidades, deve estar pronto em 2026 uma nova investigação
sobre a comunidade cigana em Portugal.
A investigadora do projeto, a socióloga Maria
Manuela Mendes, alertou
o Expresso este ano para o aumento do anticiganismo que existe de “forma descarada” e para a
"urgência" da crise da habitação desta população.
Chegados à Biblioteca Municipal de Beja para
ouvirmos Lídia Jorge, que além de uma extraordinária escritora é uma pensadora
de excelência, dei de caras com uma frase de José
Saramago na parede, que parecia dar um remate ao que tinha sido comentado no
carro:
“… Seria perfeito reunir em um só lugar, sem
diferenças de países, de raças, de credos e de línguas, todos quantos me lêem e
passar o resto dos meus dias a conversar com eles.”
Bem sei que a literatura tantas vezes é um
sismógrafo ou uma lanterna a apontar na escuridão. Precisamos discutir mais a
partir desse lugar de utopia. (...)».
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Deve ser por trabalhos como este que por aqui não se consegue viver «sem jornais» ...