sábado, 20 de julho de 2024

«Os ciganos até têm medo de voltar!»

 



Bem sabemos, nem tudo é como o sol, e  há coisas que quando nascem não são para todos. Vem isto a propósito da Newsletter da imagem que, como se pode verificar, é exclusivo para assinantes. Em regra, lemos com interesse e proveito. E «a beleza das pequenas coisas» cativa-nos em especial. Neste quadro, apenas um excerto abaixo (mas se bem interpretamos não se está impedido de divulgar) do  mais recentemente recebido e até pode ser que leve a um novo/a assinante - e a comunicação social bem precisa, no limite todos nós. Assim: 

“Aqui os ciganos foram todos expulsos!”

 


«Vou partilhar-vos um momento que não me sai da cabeça. E que se passou há semanas numa viagem de carro rumo ao Alentejo.

Eu estava no lugar do morto. Ou do pendura. Como lhe queiram chamar. E ao volante do veículo estava ‘Maria’, chamemos-lhe assim, uma mulher alentejana muito castiça e genuína, que carregava no sotaque, no acelerador e na simpatia. No banco de trás, seguia uma das escritoras que mais adoro ler e escutar, Lídia Jorge.

Seguíamos rumo à biblioteca municipal de Beja, no Alentejo, para nos juntarmos a um ciclo de conversas no dia em que se celebrava o centenário desse lugar com muita história, livros e cultura de comunidade.

‘Maria’, a motorista alentejana

‘Maria’, motorista de profissão, dava-nos conta que anda há uma vida nesta coisa dos festivais literários e ciclos de conversas, a fazer piscinas de asfalto entre Lisboa e Beja, noite e dia, e que já perdeu a conta às tantas madrugadas passadas em claro, a desafiar o sono e cansaço, para trazer escritoras e escritores para o interior do alentejo, de modo a espantarem o isolamento e criarem mais pontes daquela população com o mundo.

A motorista ‘Maria’ comentou que conhece muitos escritores só pelo primeiro nome, não sabe os seus apelidos, nem o que escrevem. Basta-lhe a morada e o contacto da dona Lídia, do senhor Gonçalo, do senhor José Luís, e por aí fora.

Recordei-me nesse momento do que me dissera, numa entrevista, o escritor e poeta surrealista Alberto Pimenta, que quando esteve doente, deitado numa maca do hospital, o tratavam apenas por “senhor José”, o primeiro nome registado no seu Cartão de Cidadão.

O que lhe trazia a noção precisa de que nada valem presunções, medalhas e águas bentas - a chatice do ego e da pedantice de uns e outras - na hora da doença ou da morte.

Mas voltemos à viagem de carro que estava a relatar. A dado momento, quando passámos por um determinado vilarejo alentejano, ‘Maria’ atirou uma frase que entrou como uma bala na minha orelha. Não fez sangue, mas fez comichão.

“Os ciganos até têm medo de voltar!”

“Aqui nesta aldeia os ciganos foram todos, todos expulsos.” Como? Mas qual a razão para esse episódio insólito? - quisemos saber. “O pessoal aqui não brinca. Os ciganos até têm medo de voltar.”- relatou ‘Maria’.

E deu conta que aquela população, especificamente de uma determinada vila, “não gosta de misturas”, e que por alguns desaguisados, estranhezas ou mal entendidos resolveram a coisa de forma radical. E expulsaram a comunidade cigana que ali vivia. ‘Maria’ não precisou quando isso aconteceu, apenas que aquela população não gostava de ter ciganos por perto.

Lídia, sábia a gerir a escuta, rompeu o silêncio desconfortável que se instalara com a pergunta: “Mas a comunidade cigana como se costuma dar com a restante população alentejana?”

A resposta foi surpreendente. “Muito bem. Até se dão muito bem.” E indicou outras zonas da regiões, onde a comunidade cigana se relaciona de forma pacífica, e até cúmplice, com a população local. E contou que, a seu ver, eram “boa gente”. (...)».

A lenga-lenga do costume

Embora tenha também relatado a estranheza de não saber ao certo onde obtêm dinheiro, de que acha que “trabalham pouco, são ricos, têm bons carros”, e que alguns “vivem à conta dos subsídios”, e não andam a dar no duro como ‘Maria’. Mas tem a certeza disso? “Não. Mas é o que todos dizem.” E referiu que agora é comum também se ver muitos imigrantes do Paquistão e da Índia nas ruas. “Agora só se vê disso.”

A lenga-lenga do costume, que continua a sobressair nos estudos. Na política e no preconceito, a percepção é sempre mais gulosa e eficaz do que a realidade. E cada pessoa acredita no que quer acreditar.

Mas ‘Maria’ sublinhou com sotaque cerrado que, no fundo, se dava bem com os ciganos do Alentejo, “pessoas gentis”.

“Um sotaque que encerra uma alma aberta”, comentou Lídia comigo.

Carentes de misericórdia

E Lídia partilhou ainda depois que o título “improvável” do seu último romance “Misericórdia”, o qual temia que fosse visto como um livro beato, ganhou outras dimensões e significados nestes tempos mais polarizados.

“As pessoas estão carentes de uma atitude de misericórdia umas em relação às outras. Com um mundo tão extremado, com ódio, guerra, e apesar do sagrado egoísmo das nações, as pessoas estão a clamar baixinho por misericórdia.”

Certo é que a realidade da ciganofobia no Alentejo, que André Ventura tem sabido manipular como ninguém, há muito que é notícia e dá conta de mais almas fechadas do que seria razoável. “Há muita gente daqui que só vota em quem diz mal dos ciganos. E essa pessoa é André Ventura.”, esclareceu ‘Maria’.

Em 2009, o antropólogo André Correia reportava no ciclo de palestras Pobreza e Comunidades Ciganas que no Alentejo, famílias ciganas pobres, sem casa, tinham dificuldade em fixar-se e eram "forçadas" a circular como nómadas pela região, confrontando-se com a "tolerância temporária" ou com a "expulsão rápida".

Portugal devia “pedir desculpa aos ciganos”

Dez anos depois, o antropólogo e investigador José Pereira Bastos, afirmava que Portugal devia “pedir desculpa aos ciganos” e considerava que no nosso país, os ciganos “são aquilo que em psicanálise se chama o ‘mau objecto'”.

E recordou um estudo que fez sobre as “Minorias Étnicas em Portugal” que veio mostrar que “não há qualquer comparação” entre o racismo de que é alvo a comunidade cigana e qualquer outra comunidade.

Nas legislativas de 2019, a jornalista Liliana Valente deu conta desta mesma alienação e crença de certas regiões alentejanas que foram sensíveis ao discurso populista e ciganofóbico de André Ventura.

Recordo que no concelho de Moura foram precisamente as freguesias com comunidades ciganas mais relevantes, aquelas em que a população mais colocou a cruz em Ventura. E ali, o discurso passava mais pela percepção do que pela realidade.

Neste conflito o que funciona como gasolina para a fogueira do ódio é precisamente a questão do rendimento.

“O discurso de Ventura, que repete à exaustão, de que há metade a trabalhar para a outra metade que não trabalha, é fósforo a pegar no rastilho.” E se os dados mostram que a comunidade cigana recebe uma ínfima parte do Rendimento Social de Inserção, apenas 3,8%, o que vale é a percepção de que os ciganos recebem mais do que quem trabalha.

Ciganos sem acesso ao trabalho

De acordo com o relato da bibliotecária de Moura, Zélia Parreira, nessa tal peça jornalística publicada pelo Expressoos vizinhos quando viam pessoas da etnia cigana a levantar os cheques do RSI nos correios, ficavam com a ideia de que lhes estava a ser dado dinheiro por nada. Mas essas pessoas não trabalham porque "não têm acesso ao trabalho, não vamos fingir que têm".

Quem dá trabalho aos ciganos? As respostas foram dadas pela ativista cigana Maria Gil e por mim, também em 2019, aqui neste vídeo “2:59 para explicar o mundo”.

Importa dar conta que durante o período da pandemia o populismo cresceu muito, sobretudo direcionado para a população cigana, acompanhado de “discursos de ódio e de incitamento ao ódio", em Portugal e na Europa que retiram características humanas às pessoas ciganas.

No final do ano passado, uma pesquisa do Instituto de Ciências Sociais (ICS), publicada pelo Expresso, do investigador Pedro Magalhães e de Rui Costa Lopes, dava conta que a nível nacional, a prevalência da discriminação contra esta minoria étnica é estimada em 30%

Aumento do anti ciganismo

E se a ciganofobia é evidente em todos os estudos que abrangem estas comunidades, deve estar pronto em 2026 uma nova investigação sobre a comunidade cigana em Portugal.

A investigadora do projeto, a socióloga Maria Manuela Mendes, alertou o Expresso este ano para o aumento do anticiganismo que existe de “forma descarada” e para a "urgência" da crise da habitação desta população.

Chegados à Biblioteca Municipal de Beja para ouvirmos Lídia Jorge, que além de uma extraordinária escritora é uma pensadora de excelência, dei de caras com uma frase de José Saramago na parede, que parecia dar um remate ao que tinha sido comentado no carro:

“… Seria perfeito reunir em um só lugar, sem diferenças de países, de raças, de credos e de línguas, todos quantos me lêem e passar o resto dos meus dias a conversar com eles.”

Bem sei que a literatura tantas vezes é um sismógrafo ou uma lanterna a apontar na escuridão. Precisamos discutir mais a partir desse lugar de utopia. (...)».


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Deve ser por trabalhos como este que por aqui não se consegue viver «sem jornais» ...

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Uma confidência: «a beleza das pequenas coisas» com frequência nos  leva ao inesquecível livro «O Deus das Pequenas Coisas». Se não leu não perca. Nas livrarias até está a um «preço simpático», mas  pode ser que exista numa Biblioteca perto de si.



Sinopse

O Deus das Pequenas Coisas é a história de três gerações de uma família da região de Kerala, no Sul da Índia, que se dispersa por todo o mundo e se reencontra na sua terra natal. Uma história feita de muitas histórias. As histórias dos gémeos Estha e Rahel, nascidos em 1962, por entre notícias de uma guerra perdida. A de sua mãe Ammu, que ama de noite o homem que os filhos amam de dia, e de Velutha, o intocável deus das pequenas coisas. A da avó Mammachi, a matriarca cujo corpo guarda cicatrizes da violência de Pappachi. A do tio Chacko, que anseia pela visita da ex-mulher inglesa, Margaret, e da filha de ambos, Sophie Mol. A da sua tia-avó mais nova, Baby Kochamma, resignada a adiar para a eternidade o seu amor terreno pelo padre Mulligan. Estas são as pequenas histórias de uma família que vive numa época conturbada e de um país cuja essência parece eterna. Onde só as pequenas coisas são ditas e as grandes coisas permanecem por dizer. Saiba mais.


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