sábado, 25 de julho de 2020

«Mas nunca tinha ouvido falar da sua mulher, Annie Goldmann, que morreu há dias»





Chegámos ao livro da imagem ao lermos a crónica de Pedro Mexia no semanário Expresso desta semana. Se puder não perca: levanta muitas das questões que temos visto abordadas em diversas situações na esfera da «problemática feminista» e também de «mulheres esquecidas». É de lá este excerto:

«Um dos mais insólitos livros de crítica literária que conheço é “Le dieu caché” (1955), do marxista heterodoxo Lucien Goldmann, brilhante ensaio sobre dois escritores quase imprestáveis para um marxista ortodoxo: Pascal e Racine. Mas nunca tinha ouvido falar da sua mulher, Annie Goldmann, que morreu há dias. Além de diversos trabalhos de sociologia do cinema, chamou-me a atenção num obituário a referência a um livro de 1984, com o título, desinspirado, “Rêves d’amour perdus”, depois esclarecido pelo subtítulo “As mulheres no romance [francês] do século XIX”. Já o li entretanto, e o programa de trabalho, claríssimo, é cumprido escrupulosamente: trata-se de “reler, a partir da problemática feminista, os romances que alimentaram a minha adolescência e continuam sem dúvida a despertar a sensibilidade literária e humana das mulheres de hoje”. 
Vale a pena fazer várias perguntas: porquê “a partir da problemática feminista” e não “com uma perspectiva feminista”; porquê apenas romances escritos por homens (Stendhal, Balzac, Flaubert, Maupassant, Zola); porquê falar sobre mulheres de acordo com a visão que os homens tinham delas; e por que razão é que as mulheres de hoje haveriam de se identificar com estas personagens? Annie Goldmann é muito honesta nas respostas que apresenta: os romances são de homens porque não havia à época, na literatura francesa, romancistas mulheres à mesma altura; a problemática feminista em todos estes romances é indiscutível, ainda que não a leitura feminista; a imagem que os homens tinham das mulheres decorria da imagem lúcida que nos deixaram da sociedade em que viviam; e quanto à identificação, o que acontece é que “a personagem romanesca (...) leva aos limites a lógica e as consequências dos seus actos; a sua vida apresenta assim uma coerência ideal que a vida real dos homens e mulheres não atinge. É por isso que é emblemática”. (…)».



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