Excerto do trabalho de Jorge Leitão Ramos:
«(...) Agora
já é outra coisa.” E é terrível, o retrato dos laços parentais no feminino que
o díptico traça, mães impossíveis que fazem o deserto em volta. “Sou eu que
acho: as mães, por muito bem que tentem fazer, acabam sempre por asfixiar os
filhos e, mais ainda, as filhas. As avós dão cabo da vida das filhas e as
filhas acabam por dar cabo da vida das netas, num ciclo imparável. É uma minha
ideia.” Capital é a figura de Piedade, central em “Mal Viver”, seca de afetos,
por um lado odiosa, por outro personagem de tragédia, que a atriz desempenha
sob um capuz facial de fechamento, com um cãozinho como fetiche, nada de
psicologia. Depois, o seu desempenho profissional no serviço aos clientes,
aquele descrever dos vinhos, o linguajar de escanção como máscara, acaba por funcionar
como suplementar cortina sobre a sua verdade interior que nunca conheceremos.
Só o desespero, lá para o fim. É o amor condicional de uma mãe, por contraste
com o amor incondicional de “Sangue do Meu Sangue”? “O amor dela não me parece
que seja condicional, a ansiedade é que a impede de mostrar que é incondicional
e de amar de uma forma natural. Tem tanto medo da vida, quer controlar tanto
tudo e sente uma responsabilidade tão grande por ser mãe que, embora tenha
sido, provavelmente, uma mãe quase perfeita, foi uma mãe que não soube
transmitir amor à filha.” Mas há outras mães, sobretudo em “Viver Mal”. “Há uma
que não aparece, uma mãe-galinha (a mãe de Jaime/Nuno Lopes, na voz telefónica
de Lourdes Norberto), quer continuar a ter o filho para ela o tempo todo; há a
Elisa/Leonor Silveira, megera intratável; é há a Judite/Beatriz Batarda a fazer
uma projeção tão grande das suas frustrações na filha que a impede de viver.”
Sempre famílias de catástrofe.Os dois filmes têm estruturas e tonalidades muito
diferentes. Embora ambos sejam conjugados em modo de verificação dos infernos
das relações parentais e sentimentais, “Mal Viver” é um covil, um huis clos,
cromaticamente sombrio, um lugar de dilaceração, enquanto “Viver Mal” é mais
aberto, solar (ambos a mostrar a versatilidade e a inteligência dramática da
direção de fotografia de Leonor Teles) — “e dá para rir”, lembra Canijo, embora
seja um riso fero, convenhamos. A ideia de fazer uma obra em duas portadas
estava presente desde o início dos trabalhos. “A produção teve duas etapas. A
ideia inicial era fazer dois filmes, se o hotel pudesse ter clientes. Ter
clientes implicava mais dinheiro. Por isso, só quando o financiamento acrescido
chegou é que se pôde concretizar o ‘Viver Mal’. Já estávamos muito avançados —
nem sei se não tínhamos já terminado — os ensaios de construção do ‘Mal Viver’.
Podia perfeitamente passar-se num hotel vazio. Com clientes, ganha outra
dimensão e outra intensidade, porque elas não estão a viver numa bolha,
completamente sozinhas, estão, quer queiram, quer não, a ser observadas pelos
clientes.” Para as histórias dos três grupos de hóspedes, o realizador usou
outras tantas peças de Strindberg, “Brincar com o Fogo”, “O Pelicano” e “Amor
de Mãe”. E o labor sobre os textos não teve a amplitude do método do outro
filme. Neste “os atores de cada núcleo leram atentamente a peça que lhes
correspondia e o trabalho deles foi adaptar os personagens a si mesmos. ‘O
Pelicano’ nem se afasta muito da peça do Strindberg”. (...)».
*******************************
E, se puder, não perca o texto de Jorge Leitão Ramos na integra. E, claro, os filmes.
Sem comentários:
Enviar um comentário