E nenhuma na literatura. É verdade, só percebi ontem à tarde. A maioria são cientistas. Espero que sirva de incentivo às raparigas jovens que se estão a iniciar na literatura e escrevem demasiada sociologia. Que sirva para lhes mostrar que vale a pena voltar ao discurso literário, porque a literatura é a articulação mais profunda da linguagem, a mais rica, aquela que pode vencer o slogan, que tem os matizes todos para vencer o discurso publicitário em duas linhas ou em duas palavras. Portanto, o enriquecimento através da literatura é absolutamente fundamental e formativo das sociedades livres e democráticas. E gostava que essas raparigas não se importassem muito com o número de vendas, nem com os likes, que não se importassem se estão a escrever sobre o feminismo ou sobre as mães solteiras e coisas no género, mas que escrevessem literatura, onde esses temas existem, mas não são o prioritário. O prioritário é a beleza que a linguagem cria e que nos salva.
Se agora começasse... Gosto das multidões. Começava por descrever uma grande multidão. É um ato absolutamente ficcional imaginar porque cada pessoa está ali. Porque é que grita “abaixo isto” ou “não queremos isto”? Porque levanta um cartaz? O que fez na vida? De onde veio? Como se levantou de manhã? Quantas pessoas deixou em casa? O que a espera à noite? Quanto ganha? Acho que é por isso que escrevo a partir dos ínfimos, porque têm histórias extraordinárias para contar. Histórias que não transparecem. Nunca me hei de esquecer de um rapaz que queria um emprego, não o arranjava e tinha vergonha de pedir dinheiro emprestado. Conseguiu o emprego, mas demoraram um mês a chamá-lo, e ele passou fome. Quando foi chamado e se apresentou pela primeira vez, aqui em Lisboa, vestiu o fatinho, comeu pouco, não tinha dinheiro, e nesse dia havia qualquer coisa na empresa e levaram-no à Casa da Comida, não sei se o restaurante ainda existe, e puseram-lhe um grande peixe à frente. Teve um choque tão grande que desmaiou.
A história é real?
Sim, ele contou-me, mas não disse a ninguém. Caiu, percebe? Porque passou fome naqueles dias! E eu pergunto quantas pessoas passam e não dizem. A superestrutura desconhece completamente isso. É preciso ouvir estas pessoas. Há três anos, houve uma descrição da nossa economia com um balanço macroeconómico fantástico, e nesse mesmo dia houve tantas greves, um rebuliço tão grande, que eu tinha de ir para Braga e só pude ir de boleia. Nesse dia, alguém tinha dado o berço da sua criança, na altura de seis anos, para dois meninos da mesma idade dormirem. Perguntou à mãe como é que eles iam caber, e ela disse: “Um com a cabeça para cima e outro com a cabeça para baixo.” E eu pensei, aqui há um problema. Nesse dia em que cheguei de noite, numa camioneta, vim com pessoas pacíficas, caladas. Todas abaladas por uma destas greves intermináveis e selvagens dos transportes. Ninguém se revoltou, vinham com os saquinhos plásticos, atravessámos a noite escura, do norte até Lisboa, os portugueses sem dizerem nada. No dia em que Portugal teve uma avaliação macroeconómica extraordinária. Como não posso escrever tudo e tenho de escolher, vou escrever aquilo que me dói mais. Vou escrever sobre aqueles que não têm palco para dizer nada. E que não são violentos, não reclamam e ficam calados a sofrer. Mas que têm capacidade de sonho e de esperança. Não há antropólogo, historiador ou economista que atinja este sítio da Humanidade. É isto que emociona. É por isso que não faço ficção, porque penso. Penso porque faço ficção. (...)».

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