«Emmi e Ali casam e arrastam nesse acto corajoso todos os clamores, ódios e frustrações de uma sociedade profundamente doente, ainda ferida no seu orgulho de raça superior, herdado do seu funesto e trágico passado. São ainda os restos dos discursos do ódio, das obsoletas sombras que persistem num país a tentar libertar-se dos espectros que o limitam, que irão construir o cerco em torno dos amantes. Mais do que a estranheza da diferença de idades entre os amantes, é o ódio em relação ao Outro, o estranho, o estrangeiro, esse lixo que, embora útil, está a invadir de novo o espaço limpo de uma Alemanha a erguer-se do seu atoleiro histórico. Para os alemães, os marroquinos são cães, dirá Ali. Temos de ser bons, dirá por sua vez Emmi, se não a vida não vale nada.
Não é o discurso entre o bem e o mal que Fassbinder encena neste texto carregado de sinais perturbadores sobre o tempo dos monstros é, sobretudo, uma parábola assertiva e cínica sobre o modo como os outros nos olham, invadem a nossa intimidade e nos tentam controlar e submeter; confinar em novos guetos o nosso direito à liberdade e as escolhas que fazemos, mesmos quando essas declinações são geradas pelo ódio ao que é diferente, ao que pensa e age de modo diverso, às suas crenças, hábitos e cultura. Essa gente suja, dirá uma personagem, Ali, toma banho todos os dias, contraporá Emmi.
Afinal o preconceito existe, gerando a irracionalidade que conduz ao ódio - e essa é uma visão perturbadora de uma realidade contaminada por interesses exteriores ao proletariado, que José Saramago também desenvolve em alguns dos seus romances -, no seio da mesma classe social: as mulheres da limpeza, os funcionários públicos, os pequenos comerciantes, a mão-de-obra barata e sem direitos e o sub-mundo de proxenetas e prostitutas, tão caro a Fassbinder, que ele transporta para este soberbo, violento e eficaz texto. (...)».
Por fim, não resistimos em associarmo-nos, em particular, ao «rigor e virtuosismo desse mestre do nosso teatro contemporâneo que é Rogério de Carvalho», referido por Domingos Lobo.
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